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segunda-feira, 24 de julho de 2017

Princípios Elementares de Filosofia - CAPITULO V



HÁ UMA TERCEIRA FILOSOFIA? O AGNOSTICISMO

I.     - Porque uma terceira filosofia?
II.    – Argumentação desta filosofia?
III.   – De onde vem esta filosofia?
IV.   – As suas conseqüências.
V.    - Como refutar esta “terceira” filosofia?
VI.   – Conclusão.

I.  – Porque  uma terceira filosofia?

Pode parecer-nos, depois, destes primeiros capítulos, que, afinal deve ser bastante fácil orientarmo-nos no meio de todos os raciocínios filosóficos, uma vez que só duas grandes dividem entre si todas as teorias: o idealismo e o materialismo. E que, além disso, os argumentos que militam em favor do materialismo dominam a convicção de maneira definitiva.

Parece, portanto, que, depois de algum exame, tenhamos encontrado o caminho que conduz a filosofia da razão: o materialismo.

Mas, as coisas não são tão simples. Como já assinalamos, os idealistas modernos não tem a franqueza do Bispo Berkeley. Apresentam as suas idéias

Com muito mais artifícios, sob uma forma obscurecida pelo emprego de uma terminologia “nova”, destinada a fazê-las  tomar, por pessoas ingênuas, pela filosofia “mais moderna”16.

Vimos que à pergunta fundamental da filosofia podem ser dadas duas respostas, totalmente opostas, contraditórias e inconciliáveis. São claras, e não permitem nenhuma confusão.

E, com efeito,, até cerca de 1710, o problema era posto assim: de um lado, os que afirmavam a existência da matéria fora de nosso pensamento – eram os materialistas; do outro, os que, com Berkeley, negavam a existência da matéria, e pretendiam que esta existia apenas em nós, no nosso espírito – eram os idealistas.

Mas, nessa época, progredindo as ciências, outros filósofos intervieram, os quais tentaram desempatar idealistas e materialistas, criando uma corrente filosófica  que lançasse a confusão entre essas duas teorias: tal confusão tem a sua origem na procura de uma terceira filosofia.

II. -  Argumentação dessa terceira filosofia.

A Base desta filosofia, elaborada depois de Berkeley, é que é inútil procurar conhecer a natureza real das coisas, e que nunca conheceremos senão as aparências.

É por isso que se chama a esta filosofia agnosticismo (do grego a, negação, e gnósticos, capaz de conhecer, portanto: “incapaz de conhecer”)

Segundo os agnósticos, não se pode saber se o mundo e, na realidade, espírito ou natureza. É-nos possível conhecer as aparências das coisas, mas não a realidade.

Retomamos o exemplo do sol. Vimos que não é, como o pensavam os primeiros homens um disco achatado e vermelho. Esse disco não era, portanto, mais que uma ilusão, uma aparência ( a aparência é a idéia superficial que temos das coisas; não é sua realidade).

Eis porque, considerando que os idealistas e materialistas se disputam para saber se as coisas são matéria ou espírito, se existem ou não fora de nosso pensamento, se nos é possível ou não conhecê-las, os agnósticos dizem que se pode, na verdade, se conhecer a aparência, mas nunca a realidade.

Os nossos sentidos, dizem, permitem-nos ver e sentir as coisas, conhecer os aspectos exteriores, as aparências; estas aparências existem, portanto, para nós; constituem o que se chama, em linguagem filosófica, a “coisa para nós”. Mas não podemos conhecer a coisa independente de nós, com a realidade que lhe é própria, o que se chama a “coisa em si”

Os idealistas e os materialistas, discutindo continuamente sobre esses assuntos, são comparáveis a dois homens que tivessem, um, óculos azuis, o outro, cor-de-rosa; passeariam na neve, e discutiriam para saber qual sua cor verdadeira. Suponhamos que nunca poderiam tirar os óculos. Poderão um dia conhecer a verdadeira cor da neve?...Não. Pois bem os idealistas e os materialistas, que disputam para saber qual das duas facções tem razão, trazem óculos azuis e cor-de-rosa. Nunca conhecerão a realidade. Terão um conhecimento da neve “para eles”; cada um vê-la-á à sua maneira, mas nunca a conhecerão “em si mesma”. Tal é o raciocínio dos agnósticos.

III. -  De onde vem essa filosofia?

Os fundadores dessa filosofia são Hume (1711-1776), que era escocês, e Kant (1724-1804), um alemão. Ambos tentaram conciliar o idealismo e o materialismo.

Eis uma passagem dos recicínios de Hume, citados por Lenine no seu livro “Materialismo e empiriocriticismo”:

Pode considerar-se como evidente que os homens são propensos, por instinto natural..., a fiar-se na sua opinião, e que, sem o menor raciocínio,supomos sempre a de um universo exterior, independente da nossa percepção, que existiria mesmo que fôssemos destruídos com todos os seres dotados de sensibilidade...
Mas, esta opinião primordial e universal é prontamente desacreditada pela filosofia mais superficial, que nos ensina que nada (para além da imagem ou da percepção será jamais acessível ao nosso espírito e que as sensações são apenas canais seguidos por essas imagens, não estando em condições de estabelecer, elas próprias, uma relação direta, qualquer que seja, entre o espírito e o objeto. A mesa que vemos parece-nos mais pequena quando nos afastamos, mas a mesa real, que existe independentemente de nós, não muda; o nosso espírito percebeu, portanto, apenas a imagem da mesa. Tais são as indicações evidente da razão17.

Vimos que Hume admite, em primeiro lugar, o que é por demais evidente: a “existência de um universo exterior” que não depende de nós. Mas, imediatamente, recusa-se a admitir tal existência como uma realidade objetiva. Para ele, não é mais que uma imagem, e os nossos sentidos, que constatam essa existência, essa imagem, são incapazes de estabelecer uma relação, qualquer que seja, entre o espírito e o objeto.

Numa palavra, vivemos no meio de coisas como no cinema, onde constatamos, na tela, as imagens dos objetos, a sua existência, mas onde, por detrás das próprias imagens, isto é, por detrás da tela, nada há.

Agora, se quisermos saber como nosso espírito tem conhecimento dos objetos, isso pode ser devido
A energia da nossa própria inteligência ou a ação de qualquer espírito invisível e desconhecido, ou, então, a qualquer causa menos conhecida ainda18.


IV.  -  As suas conseqüências.


Eis uma teoria fascinante que, aliás, esta muito difundida. Encontramo-la, sob diferentes aspectos, no decorrer da história, entre as teorias filosóficas , e nos nossos dias, em todos que pretendem “ficar neutros e manter-se numa reserva cientifica”.

É-nos necessário, portanto, examinar se esses raciocínios são justos e que conseqüências deles resultam.

Se nos é verdadeiramente impossível, como afirmam os agnósticos, conhecer  a natureza verdadeira das coisas, e se o nosso conhecimento se limita as suas aparências, não podemos pois, afirmar a existência da realidade objetiva, e saber se as coisas existem por elas próprias. Para nos, por exemplo, o automóvel é uma realidade objetiva; o agnóstico, esse diz-nos que tal não é certo, que não se pode saber se é um pensamento ou uma realidade. Interdita-nos,portanto, de sustentar que o nosso pensamento é o reflexo das coisas. Vemos que estamos  em pleno raciocínio idealista, porque, entre afirmar que as coisas não existem ou, muito simplesmente, que não podemos saber se existem, a diferença não é grande!

Vimos que o agnóstico distingue as “coisas para nós” e “as coisas em si”. O estudo das coisas para nós é, pois, possível: é a ciência; mas, o estudo da coisa em si é impossível, porque não podemos conhecer o que existe fora de nos.

O resultado deste raciocínio é o seguinte: o agnóstico aceita a ciência; e, como esta só pode ser utilizada para expulsar da natureza toda força sobrenatural, é, perante ela, materialista.

Mas, apressa-se a acrescentar que a ciência, dando-nos só aparências, jamais prova, por outra via, que não haja na realidade outra coisa alem da matéria, ou sequer que esta exista ou não existe Deus. A razão humana nada pode saber, e nem tem que intrometer-se. Se há outros meios para conhecer as “coisas em si” como a fé religiosa, o agnóstico não o quer saber tão pouco, e não reconhece o direito de discutir isso.

O agnóstico é,portanto, quanto a conduta da vida e à construção da ciência, um materialista que não ousa afirmar o seu materialismo, procurando, antes de mais, não se meter em dificuldades com os idealistas, não entrar conflito com as religiões. É “um materialista envergonhado”19.

A conseqüência é que, duvidando do valor profundo da ciência, vendo nela apenas aparências, esta terceira filosofia nos propõe não atribuir nenhuma verdade à ciência e considerar como  perfeitamente inútil  saber qualquer coisa, tentar contribuir para o progresso.

Os agnósticos dizem: outrora, os homens viam o sol como um disco achatado, e acreditavam que era assim na realidade; enganavam-se. Hoje, a ciência diz-nos que o sol não é tal como o vemos, e pretende explicar tudo. Sabemos, portanto, que se engana muitas vezes, destruindo num dia o que construiu na véspera. Erro ontem, verdade hoje, mas erro amanhã. Assim, sustentam os agnósticos, não podemos saber; a razão não nos traz  nenhuma certeza. E se outros meios além da razão, como a fé religiosa, pretendem dar-nos certezas absolutas, nem mesmo a ciência nos pode impedir de acreditar nisso. Diminuindo a confiança na ciência, o agnosticismo prepara, assim, o regresso das religiões.

V. -  Como refutar esta “terceira” filosofia?

Vemos que, para provar as suas afirmações, os materialistas se servem, não apenas da ciência, mas, também, da experiência, que permite controlar as ciências. Graças ao “critério da prática”, podemos saber, conhecer as coisas.

Os agnósticos dizem-nos que é impossível afirmar que o mundo exterior existe ou não.

Ora, pela prática, sabemos que o mundo e as coisas existem. Sabemos que as idéias que fazemos destas são fundamentais, que as relações que estabelecemos entre elas e nós são reais.

Desde que empregamos estes objetos, em uso próprio, segundo as qualidades que neles percebemos, submetemos  a uma prova infalível a exatidão ou inexatidão das nossas percepções sensoriais. Se estas são falsas, o uso dos objetos que nos sugeriram é falso; por conseqüência, a nossa tentativa deve falhar: Mas se logramos alcançar o nosso fim, se constatamos que nosso objeto corresponde à representação que temos dele, que dá o que esperamos da sua utilização, é a prova positiva que, no quadro  destes limites, as nossas percepções do objeto e das suas qualidades concordam com a realidade fora de nós. E se, pelo contrário, falhamos, não estamos geralmente longe de descobrir a causa de nosso insucesso; achamos que a percepção que serviu de base à nossa tentativa, ou era, por si, incompleta ou superficial, ou fora ligada de uma maneira que não justificava a realidade aos dados de outras percepções. É o que chamamos um raciocínio defeituoso. É por isso, quanto mais cuidamos da educação e  utilização correta dos nossos sentidos, cingindo a nossa ação aos limites prescritos  pelas nossas percepções corretamente obtidas e utilizadas, mais freqüentemente acharemos que o resultado de nossa ação demonstra a conformidade das nossas percepções com a natureza objetiva dos objetos percebidos. Até aqui, não há um único exemplo de que dos nossos sentidos, cientificamente controlados, tenham engendrado no nosso cérebro representações do mundo exterior que estejam, pela sua própria natureza, em desacordo com a realidade, ou que haja incompatibilidade imanente entre o mundo exterior e as percepções sensíveis que temos a esse respeito20.

Retomando a frase de Engels, diremos: “Só se prova que o pudim existe, comendo-o” (provérbio Inglês). Se não existisse ou fosse apenas uma idéia, depois de o ter comido, a nossa fome não estaria de modo algum apaziguada. Assim, é-nos perfeitamente possível conhecer as coisas, ver se nossas idéias correspondem a realidade. É-nos possível controlar os dados da ciência pela experiência e a destreza que traduzem, em aplicações práticas, os resultados teóricos das ciências. Se podemos fazer borracha sintética, é porque a ciência conhecia a “coisa em si” que é a borracha.

Vemos, pois, que não é inútil procurar saber quem tem razão, um vez que, através dos erros teóricos que a ciência pode cometer, a experiência nos dá cada vez mais a prova de que é na verdade a ciência que tem razão.

VI.  -  Conclusão.

Depois do século XVIII, nos diferentes pensadores que deram maior ou menor contributo ao agnosticismo, vemos que esta filosofia é sacudida, ora pelo idealismo, ora pelo materialismo. Acoberto de palavras novas, como diz Lenine, pretendendo mesmo servir-se das ciências para apoiar os seus raciocínios, mas não fazem que criar a confusão entre as duas teorias, permitindo, assim, a alguns terem uma filosofia cômoda, que lhes dá a possibilidade de declarar que não são idealistas, porque se servem da ciência, mas que também  não são materialistas, porque não ousam ir até ao fim dos seus argumentos, porque não são conseqüentes.

Que é, pois, o agnosticismo, diz Engels, se não um materialismo envergonhado? A concepção da natureza que o agnóstico tem é inteiramente materialista. Todo o mundo natural é governado por leis, e não admite a intervenção de uma ação exterior; mas acrescenta por precaução: “Não possuímos o meio de afirmar ou negar a existência de um qualquer ser supremo para além do universo conhecido”21.

Esta filosofia faz, portanto, o jogo do idealismo, e, no fim das contas, porque são inconseqüentes  nos seus raciocínios, os agnósticos tendem para o idealismo. “Raspai o agnóstico, diz Lenine, encontrareis o idealista”.

Vimos que pode saber-se , do materialismo ou do idealismo, quem tem razão.

Vemos, agora, que as teorias que pretendem conciliar estas duas filosofias não podem, de fato, senão afirmar o idealismo, que não trazem uma terceira resposta à pergunta fundamental da filosofia, e que, por conseqüência, não há terceira filosofia.


Leituras

16  Lenine: “Materialismo e empiriocriticismo”, Ed. Avante 1982
17  Idem.
18  Idem.
19  Engels: “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, Introdução, Obras Escolhidas de Marx e Engels em três Tomos, PP. 140-149
20  Engels: idem...
21 Engels: idem...


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