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segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Albert Einstein: porque o Socialismo?



Tradução do inglês por Anabela Magalhães
 

Albert Einstein

Será aconselhável para quem não é especialista em assuntos econômicos e sociais exprimir opiniões a propósito do socialismo? Eu creio que sim, por várias razões.

Consideremos primeiro a questão do ponto de vista do conhecimento científico.

Pode parecer que não há diferenças metodológicas fundamentais entre a astronomia e a economia: em ambos os campos os cientistas procuram descobrir leis com aceitação geral para um grupo circunscrito de fenômenos de modo a tornar a interligação destes fenômenos tão claramente compreensível quanto possível.

Mas, na realidade, estas diferenças metodológicas existem. A descoberta de leis gerais no campo da economia é complicada pela circunstância de que os fenômenos econômicos observados são com frequência influenciados por muitos outros fatores, que são muito difíceis de avaliar separadamente. Além disso, a experiência acumulada desde o início do chamado período civilizado da história da humanidade – como é bem conhecido – tem sido largamente influenciada e limitada por causas que não são, de modo nenhum, exclusivamente econômicas por natureza. Por exemplo, a maior parte dos principais Estados ficou a dever a sua existência à conquista. Os povos conquistadores estabeleceram-se, legal e economicamente, como a classe privilegiada do país conquistado. Ficaram com o monopólio da propriedade da terra e nomearam um clero entre as suas próprias fileiras. Os sacerdotes, que controlavam a educação, tornaram a divisão de classes da sociedade numa instituição permanente e criaram um sistema de valores pelos quais, desde então, o povo se tem guiado, em grande medida inconscientemente, no seu comportamento social.

Mas a tradição histórica, digamos, faz parte do passado; em parte alguma se superou verdadeiramente a fase do desenvolvimento humano, que Thorstein Veblen chamou de «predatória». Os fatos econômicos observáveis pertencem a essa fase e mesmo as leis que podemos determinar a partir deles não são aplicáveis a outras fases. Uma vez que o verdadeiro objetivo do socialismo é precisamente superar e ir além da fase predatória do desenvolvimento humano, a ciência econômica no seu estado atual pouca luz pode lançar sobre a sociedade socialista do futuro.

Em segundo lugar, o socialismo orienta-se por um objetivo ético-social. A ciência, contudo, não pode criar objetivos e, muito menos, incuti-los nos seres humanos; quando muito, a ciência pode fornecer os meios para atingir determinados objetivos. Mas os próprios objetivos são concebidos por personalidades com ideais éticos elevados e – se estes ideais não forem na dos mortos, mas vitais e vigorosos – são adotados e levados avante por aqueles muitos seres humanos que, semi-inconscientemente, determinam a evolução lenta da sociedade.

Por estas razões devemos precaver-nos para não superestimarmos a ciência e os métodos científicos quando se trata de problemas humanos; e não devemos presumir que os peritos são os únicos que têm o direito a expressarem-se sobre questões que afetam a organização da sociedade.

Inúmeras vozes têm afirmado desde há algum tempo que a sociedade humana atravessa uma crise, que a sua estabilidade foi gravemente abalada. É característico deste tipo de situação que os indivíduos se sintam indiferentes ou mesmo hostis em relação ao grupo, pequeno ou grande, a que pertencem. Para ilustrar o meu pensamento, permitam-me que refira aqui uma experiência pessoal. Falei recentemente com um homem inteligente e cordial sobre a ameaça de outra guerra, que, na minha opinião, colocaria em sério risco a existência da humanidade, e observei que só uma organização supranacional ofereceria proteção contra esse perigo. Imediatamente o meu visitante, muito calma e friamente, disse-me: «Porque se opõe tão profundamente ao desaparecimento da raça humana?»

Estou certo de que há um século ninguém teria feito tão ligeiramente uma afirmação deste tipo. É uma afirmação de um homem que se esforçou em vão para tingir um equilíbrio interior e que perdeu mais ou menos a esperança de o conseguir. É a expressão de uma solidão e um isolamento penosos de que tanta gente sofre hoje em dia. Qual é a causa? Haverá uma saída?

É fácil levantar estas questões, mas é difícil responder-lhes com algum grau de segurança. No entanto, devo tentar o melhor que posso, embora esteja consciente do fato de que os nossos sentimentos e esforços são muitas vezes contraditórios e obscuros e que não podem ser expressos em fórmulas fáceis e simples.

O homem é simultaneamente um ser solitário e um ser social. Enquanto ser solitário, tenta proteger a sua própria existência e dos que lhe são próximos, satisfazer os seus desejos pessoais, e desenvolver as suas capacidades inatas.

Enquanto ser social procura ganhar o reconhecimento e afeição dos seus semelhantes, partilhar os seus prazeres, confortá-los nas suas tristezas e melhorar as suas condições de vida. É apenas a existência destes esforços diversos e frequentemente conflituosos que explica o caráter especial do ser humano, e a sua  combinação específica determina em que medida um indivíduo pode alcançar um equilíbrio interior e contribuir para o bem-estar da sociedade. É perfeitamente possível que a força relativa destes dois impulsos seja, em grande parte, determinada por hereditariedade. Mas a personalidade que finalmente emerge é largamente formada pelo ambiente em que o indivíduo se encontra por acaso durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que cresce, pela tradição dessa sociedade, e pela apreciação que faz de determinados tipos de comportamento. O conceito abstrato de «sociedade» significa para o ser humano individual as soma total das suas relações diretas e indiretas com os seus contemporâneos e com todas as pessoas de gerações anteriores. O indivíduo é capaz de pensar, sentir, lutar e trabalhar sozinho, mas depende tanto da sociedade – na sua existência física, intelectual e emocional – que é impossível pensar nele, ou compreendê-lo, fora do quadro da sociedade. É a «sociedade» que lhe fornece comida, roupa, casa, instrumentos de trabalho, a linguagem, formas de pensamento e a maior parte do conteúdo do pensamento; a sua vida foi tornada possível pelo labor e realizações de muitos milhões de indivíduos no passado e no presente, que se escondem sob a pequena palavra «sociedade».

É evidente, por conseguinte, que a dependência do indivíduo em relação à sociedade é um fato natural que não pode ser abolido – tal como no caso das formigas e das abelhas. No entanto, enquanto todo o processo de vida das formigas e abelhas é estabelecido, nos mais ínfimos pormenores, por instintos hereditários rígidos, o padrão social e o relacionamento dos seres humanos são muito variáveis e susceptíveis de mudança. A memória, a capacidade de fazer novas combinações, o dom da comunicação oral tornaram possíveis desenvolvimentos entre os seres humanos que não são ditados por necessidades biológicas. Estes desenvolvimentos manifestam-se nas tradições, instituições e organizações; na literatura; nas obras científicas e de engenharia; nas obras de arte. Isto explica, num certo sentido, como pode o homem influenciar a sua vida através da sua própria conduta e como, neste processo, o pensamento e a vontade conscientes podem desempenhar um papel.

Através da hereditariedade, o homem adquire à nascença uma constituição biológica que devemos considerar fixa ou inalterável, incluindo os desejos naturais que são característicos da espécie humana. Além disso, durante a sua vida, adquire uma constituição cultural que adota da sociedade através da comunicação e através de muitos outros tipos de influências. É esta constituição cultural que, no decurso do tempo, está sujeita à mudança e que determina, em larga medida, a relação entre o indivíduo e a sociedade. A antropologia moderna ensina-nos, através da investigação comparativa das chamadas culturas primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode apresentar grandes diferenças, em função dos padrões culturais dominantes e dos tipos de organização que predominam na sociedade. É nisto que podem assentar as suas esperanças aqueles que se esforçam para melhorar a sorte do homem: os seres humanos não estão condenados, por causa da sua constituição biológica, a aniquilarem-se uns aos outros ou à mercê de um destino cruel auto-infligido.

Se nos interrogarmos sobre como deveria mudar a estrutura da sociedade e a atitude cultural do homem para tornar a vida humana tão satisfatória quanto possível, devemos estar permanentemente conscientes do fato de que há determinadas condições que não podemos alterar. Como atrás mencionamos, a natureza biológica do homem, para todos os fins práticos, não está sujeita à mudança. Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos últimos séculos criaram condições que se manterão. Em populações com uma densidade relativamente elevada, que dispõem de bens indispensáveis à sua existência, é absolutamente necessário haver uma divisão extrema do trabalho e um aparelho produtivo altamente centralizado. O tempo em que os indivíduos ou grupos relativamente pequenos podiam ser completamente autossuficientes – que visto à distância parece tão idílico – pertence definitivamente ao passado. Não é grande exagero dizer-se que a humanidade constitui já hoje uma comunidade planetária de produção e consumo.

Chego agora ao ponto em que posso indicar sucintamente o que para mim constitui a essência da crise do nosso tempo. Trata-se da relação do indivíduo com a sociedade. O indivíduo tornou-se mais consciente que nunca da sua dependência relativamente à sociedade. Mas não sente esta dependência como um bem positivo, como um laço orgânico, como uma força protetora, mas antes como uma ameaça aos seus direitos naturais, ou ainda à sua existência econômica. Além disso, a sua posição na sociedade é tal que os impulsos egoístas do seu ser estão constantemente a ser acentuados, enquanto os seus impulsos sociais, que são por natureza mais fracos, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, seja qual for a sua posição na sociedade, sofrem este processo de deterioração. Inconscientemente prisioneiros do seu próprio egoísmo, sentem-se inseguros, sós, e privados do gozo cândido, simples e não sofisticado da vida. O homem só pode encontrar sentido na vida, curta e perigosa como é, através da sua devoção à sociedade.

A anarquia econômica da sociedade capitalista, tal como existe atualmente, é, na minha opinião, a verdadeira origem do mal. Vemos diante de nós uma enorme comunidade de produtores cujos membros procuraram incessantemente despojar cada qual dos frutos do seu trabalho coletivo – não pela força, mas, em geral, em total conformidade com as regras legalmente estabelecidas. A este respeito, é importante compreender que os meios de produção – ou seja, toda a capacidade produtiva necessária para produzir bens de consumo, bem como novos bens de capital – podem ser legalmente, e na sua maior parte são, propriedade privada de indivíduos.

Para simplificar, no debate que se segue, chamarei «operários» a todos aqueles que não partilham a posse dos meios de produção – embora isto não corresponda exatamente à utilização habitual do termo. O detentor dos meios de produção está em posição de comprar a força de trabalho do operário. Ao utilizar os meios de produção, o operário produz novos bens que se tornam propriedade do capitalista.

O ponto essencial deste processo é a relação entre o que o trabalhador produz e o que lhe é pago, ambos medidos em termos de valor real. Na medida em que o contrato de trabalho é «livre», o que o trabalhador recebe é determinado não pelo valor real dos bens que produz, mas pelas suas necessidades mínimas e pela quantidade de força de trabalho de que o capitalista necessita em relação ao número de operários que procuram emprego. É importante compreender que, mesmo em teoria, o salário do operário não é determinado pelo valor do seu produto.

O capital privado tende a concentrar-se em poucas mãos, em parte por causa da concorrência entre os capitalistas e em parte porque o desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão do trabalho encorajam a formação de unidades de produção maiores à custa de outras mais pequenas. O resultado destes desenvolvimentos é uma oligarquia de capital privado cujo enorme poder não pode ser eficazmente controlado mesmo por uma sociedade que tem uma organização política democrática. Isto é verdade, uma vez que os membros dos órgãos legislativos são escolhidos pelos partidos políticos, largamente financiados ou influenciados por outras vias pelos capitalistas privados que, para todos os efeitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não protegem suficientemente os interesses das camadas desfavorecidas da população.

Além disso, nas condições existentes, os capitalistas privados controlam inevitavelmente, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). É assim extremamente difícil para o cidadão, e na maior parte dos casos completamente impossível, chegar a conclusões objetivas e fazer uso inteligente dos seus direitos políticos.

A situação que prevalece numa economia baseada na propriedade privada do capital caracteriza-se por dois princípios centrais: primeiro, os meios de produção (capital) são privados e os detentores utilizam-nos da forma que lhes convém; segundo, o contrato de trabalho é livre. É claro que neste sentido não existe uma sociedade capitalista pura. Deve-se notar, em particular, que, através de longas e duras lutas políticas, os trabalhadores conseguiram obter para certas categorias deles formas melhoradas de «contrato de trabalho livre». Mas, vista no seu conjunto, a economia atual não difere muito do capitalismo «puro».

A produção realiza-se tendo em vista o lucro e não o uso. Não há nenhuma garantia de que todos aqueles que tenham capacidade e queiram trabalhar possam encontrar emprego; existe quase sempre um «exército de desempregados». O operário receia constantemente perder o seu emprego. E dado que os desempregados e os operários mal pagos consomem pouco, a produção de bens de consumo é restringida, e a consequência são grandes privações. O progresso tecnológico resulta frequentemente em mais desemprego em vez de um aligeiramento da carga de trabalho para todos. O objetivo do lucro, em conjunto com a concorrência entre capitalistas, é responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização do capital que conduz a depressões cada vez mais graves. A concorrência sem limites conduz a um enorme desperdício do trabalho e ao estropiamento da consciência social dos indivíduos que mencionei atrás.

Considero este estropiamento dos indivíduos como o pior mal do capitalismo.

Todo o nosso sistema educativo sofre deste mal. Uma atitude exageradamente competitiva é incutida no aluno, que é educado para venerar o poder aquisitivo como preparação para a sua futura carreira.

Estou convencido que só há uma forma de eliminar estes sérios males, nomeadamente através do estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educativo orientado para objetivos sociais. Nesta economia, os meios de produção são detidos pela própria sociedade e são utilizados de forma planificada. Uma economia planificada, que ajuste a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre aqueles que podem trabalhar e garantiria o sustento a todos os homens, mulheres e crianças. A educação do indivíduo, além de promover as suas próprias capacidades inatas, procuraria desenvolver nele um sentido de responsabilidade pelo seu semelhante em vez da glorificação do poder e do sucesso na nossa atual sociedade.

No entanto, é necessário lembrar que uma economia planificada não é ainda o socialismo. Uma economia planificada pode ser acompanhada por uma completa sujeição do indivíduo. A realização do socialismo exige a resolução de alguns problemas políticos e sociais extremamente difíceis: como é possível, com uma centralização em grande escala do poder econômico e político, evitar que a burocracia se torne omnipotente e arrogante? Como se pode proteger os direitos do indivíduo e assegurar um contrapeso democrático ao poder da burocracia?

A clareza sobre os objetivos e problemas do socialismo é da maior importância na nossa época de transição. Visto que, nas atuais circunstâncias, a discussão livre e sem entraves destes problemas constitui um tabu poderoso, considero a fundação desta revista como um serviço público importante.

 

1 Artigo escrito por Albert Einstein especialmente para o primeiro número da revista norte-americana Monthly Review, Nova Iorque, Maio de 1949. (Texto traduzido e publicado pelo site resistir.info, em 4.07.2002: resistir.info/mreview/porque_o_socialismo.html. (N. Ed.)

2 Veblen, Thorstein Bunde (1857-1929), economista e sociólogo norte-americano,segundo o qual as instituições da economia são influenciadas por dois instintos de base, o instinto artesão e o instinto predador. Pelo primeiro, o homem enriquece-se pelo seu trabalho, enquanto pelo segundo procura desapossar os outros dos seus bens e dos resultados do seu trabalho. (N. Ed.).
Fonte:
www.hist-socialismo.net

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